Como piloto de drone, Hanna Beatriz está abrindo espaço para mulher negra no mundo do audiovisual
O propósito do trabalho de Hanna é dar visibilidade a populações vulneráveis e contribuir com pautas sociais
Hanna Beatriz tem só 22 anos, muita história para contar e conquistas para celebrar. Depois de viver situações de violência física e psicológica durante a infância e adolescência, é hoje uma das poucas mulheres negras no país a trabalhar pilotando drones para grandes produções audiovisuais. No portfólio, imagens para o documentário internacional Raízes da África e o longa-metragem “Tudo por um Pop Star 2”, a cobertura da Marcha das Mulheres Negras no Rio de Janeiro e do Rock in Rio 2024. Na bagagem de vida, a superação pessoal, o olhar sensível para os dramas sociais e a resiliência para manter-se firme em ambientes hostis.
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Nascida em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, na Baixada Fluminense, em uma localidade de baixa renda, Hanna teve infância e adolescência conturbadas, morando com a mãe – uma pessoa violenta que a mantinha afastada do convívio com outros membros da família. Aos 17 anos, começou a usar o celular para aprender sobre edição de vídeo e design gráfico e, às escondidas, passou a criar pequenos anúncios para lojinhas da região para obter alguma renda.
Com apoio de amigos, professores e da família do ex-namorado, Hanna conseguiu sair de casa e passou a viver na zona rural de um município vizinho. Diariamente, enfrentava longas horas de deslocamento até o Rio, onde cursava o Ensino Médio Técnico em Química em um instituto federal de educação. Lá, destacou-se criando projetos para ajudar alunos de escolas públicas a se prepararem para as olimpíadas brasileiras de Astronomia e de Ciências e obteve uma bolsa que ajudava no seu sustento.
Passou a visitar museus, exposições e programas musicais onde descobriu seu gosto pela arte e cultura. “Foi aí que eu comecei a viver. Claro que gostaria de ter tido uma infância e adolescência normais, mas tudo que aconteceu me fez amadurecer muito cedo e ser a pessoa que me tornei hoje”, avalia. A partir de 2022, ela conseguiu restabelecer contato com familiares e estreitar a relação com o pai, hoje um grande apoiador e companheiro.
Desde que saiu de casa, mesmo com poucos recursos, Hanna não poupou esforços em busca de qualificação. O primeiro curso foi o de produção cultural, que apresentou a ela um novo leque de caminhos profissionais. “Quando a gente vem da periferia, não se tem muito acesso à cultura. No curso, descobri possibilidades que nem sabia que existiam”, diz Hanna, que decidiu interromper o curso de química, mudou-se para o centro do Rio para ficar mais próxima do meio cultural e começou a trabalhar como iluminadora de palco em uma casa de espetáculos.
Aproveitando uma bolsa de estudos da secretaria municipal de políticas para mulheres do Rio, Hanna fez cursos de fotografia e de operadora de vídeo, onde teve aulas com instrutores que são referência para o audiovisual e o cinema negros no Brasil. Lá também percebeu a barreira seguinte que deveria superar: os custos com equipamentos para atuar na área do audiovisual. Foi com uma câmera emprestada que ela começou a fazer suas primeiras fotos. E, em 2023, chegou ao curso de Operador de Drone, do Espaço da Juventude do Estácio, oferecido pelo Instituto Besouro em parceria com a Secretaria de Juventude do Rio de Janeiro, e deu mais um passo significativo para sua carreira.
A luta contra o racismo e a atuação social como propósito
Morando na Lapa, um bairro que à noite ostenta imagem de espaço democrático, quase todos os dias Hanna passava por situações de racismo. Ela conta que frases como “vai pentear esse cabelo” eram comuns na rua. Na padaria, outras pessoas eram atendidas e ela não. Segundo Hanna, os seis meses que passou no bairro foram, no entanto, um período de grande aprendizado, pois foram situações como essas que despertaram o desejo de trabalhar para dar voz a pessoas invisíveis e vulneráveis por meio de fotos e documentários – e foram motivação para abrir sua produtora.
Ela conta que foi ali, observando um evento religioso em que os participantes, quase tropeçavam em pessoas pobres largadas nas calçadas, sem nenhum olhar ou gesto de solidariedade, que despertou e teve a clareza do seu propósito com o trabalho audiovisual. “Foi tão chocante pra mim, as pessoas passando por ele como se fosse um objeto... E veio a decisão: quero ajudar as pessoas a enxergarem de fato aquilo que não está sendo visto. E esse é um poder da fotografia e do audiovisual”, define Hanna.
Com a câmera emprestada, aventurou-se pela primeira vez nas ruas em 2022 e passou a registrar imagens do cotidiano. “Ao invés de ficar com medo de assalto, andando com equipamento entre a população de rua, foi o contrário, as pessoas vinham até mim fazendo caretas, palhaçadas, querendo ser vistas. Meu grande sonho é fazer um trabalho com essas pessoas, poder ajudar de alguma forma”, diz Hanna que além do domínio profissional, quer desenvolver mais sua estrutura emocional para poder atuar nesse universo.
Desafios da mulher negra no audiovisual
Uma área masculina, branca e com a barreira de altos custos para equipamentos. Assim Hanna define o meio de trabalho do audiovisual. Ela diz que hoje, operando drones, já desempenha funções em sets de cinema e em eventos de grande porte em que é muito comum ser a única mulher e a única negra atuando no local. “Quando se pensa em operador de drone se pensa em homens e brancos. Não temos representatividade, não temos referências negras nesse meio. E não falo só pela vivência diária no setor. Na minha pesquisa de imagem para o material de divulgação precisei da ajuda da Inteligência Artificial para criar uma imagem”, observa Hanna.
Além da maior procura pelo trabalho de homens na área,o custo dos equipamentos é outra das barreiras de contratação no mercado de trabalho do audiovisual para quem para quem vem da periferia. Hanna sinaliza que, mesmo para os homens, sofrem com racismo no meio do audiovisual. “Muitas vezes, em uma equipe com um homem branco e outro negro, o cliente insiste em se dirigir e tratar com o branco mesmo que o negro seja o coordenador da equipe”, relata.
“É difícil, mas necessário, estar nesse meio, enfrentar esses ambientes. Você recebe os olhares, percebe a cara de nojo, as pessoas te olhando como se você fosse um bicho, te encarando como se dissessem: seu lugar não é aqui”, diz Hanna lembrando de um trabalho na Zona Sul do Rio em que usou um turbante e a peça da indumentária da cultura negra incomodou até mais do que normalmente acontece com seu cabelo black.
Ela diz que lugares com pessoas com maior poder aquisitivo, eventos em áreas elitizadas, pagam melhor, mas oferecem mais riscos e fala da sua estratégia para lidar com os ambientes e pessoas hostis: “São situações que nos afetam e a gente tem que estar sempre se fortalecendo para enfrentar. Mesmo estando muitas vezes com vontade de chorar, mantenho a postura, o semblante alegre, como se nada estivesse acontecendo”, compartilha a profissional.
Hanna diz que se propõe a ocupar esse lugar, inclusive para mostrar a outras mulheres que elas também podem estar ali, mas tem o cuidado de ressaltar que essa é apenas uma escolha pessoal sua. “Não é só porque é mulher e negra que a pessoa precisa enfrentar o sistema. Se opta por não se desafiar, está tudo bem também.”
Afroframe ocupa espaço em sets de cinema e eventos de grande porte
Hanna abriu sua produtora, a Afroframe Estúdio, no início de 2023, com trabalho de fotografia. Depois ampliou sua atuação a partir do Curso de Operação de Drone, realizado no Espaço da Juventude, iniciativa Secretaria de Juventude do Município do Rio de Janeiro em parceria com o Instituto Besouro de Fomento Social.
De lá para cá, a empreendedora teve a oportunidade de ter atuar em várias produções relevantes como o documentário Raízes Africanas, que estreia nos cinemas brasileiros no próximo dia 21 de novembro e explora as influências africanas na formação de três ritmos essenciais para a música mundial: o jongo, a rumba e o blues
Hanna também fala do trabalho recente de cobertura do Rock in Rio 2024. Ela conta que, pela sua condição financeira, nunca tinha ido ao evento. Agora já poderia desfrutar desse prazer como espectadora, mas foi chamada para trabalhar fazendo imagens para a rede social Tick Tock. “Pra mim o Rock in Rio sempre foi um sonho. Imagino que é o de todo profissional do audiovisual, trabalhar em um evento desse porte. Mas achava que só aconteceria daqui a muitos anos para mim. Foi um sonho realizado!”
Hanna também destaca sua viagem à Brasília, a primeira a trabalho, realizada em dezembro de 2022, quando ainda estava em seus primeiros contatos com a câmera e atuou registrando imagens do Fórum Nacional de Mulheres Negras 2023, para um documentário sobre a trajetória de mulheres negras na política. Ela também participou do evento como representante da Rede de Mulheres Negras do Estado do Rio de Janeiro, da qual é membro e atua voluntariamente na cobertura de eventos.
Contribuir para as pautas sociais e atuar na causa das Mulheres Negras é uma das prioridades do trabalho de Hanna. “Falta ter mais pessoas como a gente para contar essa história, por isso minha ideia é sempre chamar mais mulheres negras para minha equipe. Porque quando se vai filmar um conteúdo dessas pautas sociais, é importante que a pessoa tenha essa sensibilidade”, avalia Hanna.
A empreendedora é grata pelas múltiplas oportunidades de trabalho e possibilidades de interagir e crescer, pessoal e profissionalmente: “É impressionante como um trabalho vai puxando o outro. E quando encontramos outras mulheres que têm interesse nessa pauta, as redes vão se expandindo”. Hoje, a produtora está crescendo, mudou positivamente a situação financeira de Hanna e já gera trabalho e renda para outras pessoas. Segundo ela, já são quatro profissionais fixos na equipe e ainda assim está difícil dar conta da demanda. A maioria dos trabalhos são em eventos, a maior parte deles, culturais e sociais.
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